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“É comum que o problema da parte demande uma solução que depende de boa engenhosidade jurídica”

16 de nov de 2021

Com uma análise sobre a responsabilidade civil dos notários brasileiros, a qual tem início por eventuais prejuízos causados a terceiros por atos praticados no exercício de suas atividades, o livro “Responsabilidade civil dos delegatários dos serviços extrajudiciais” traz uma abordagem das especificidades dos regimes jurídicos e desenvolvimento da atividade, elucidando sobre a sua caracterização como sui generis, ante a sua atipicidade dentro do ordenamento jurídico.

Para falar sobre a obra de sua autoria e a teoria geral da responsabilidade civil, o tabelião de notas, oficial de registro das pessoas naturais e professor, Assuero Rodrigues Neto, conversa com a Academia Notarial Brasileira (ANB) sobre os impactos dos serviços prestados pelos tabelionatos do Brasil, e as recentes mudanças trazidas pela pandemia e pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) à classe.

 

Confira a íntegra da entrevista.

 ANB – Qual a iniciativa do livro?

Assuero Rodrigues Neto – Creio que a razão que me levou a escrever sobre o tema responde esta indagação. O aprofundamento no estudo sobre a matéria se iniciou há mais de uma década, na época em que ainda era advogado, quando tive a oportunidade de atuar em uma banca especializada em Direito Notarial e Registral. Naquela experiência, me deparei com dezenas de processos que tinham por objeto exatamente a responsabilização civil dos delegatários dos serviços notariais e registrais pelos danos alegadamente causados em razão da sua atuação. Nessas lides, me deparei com decisões dos mais variados fundamentos. Mais adiante, o início de minha carreira como titular de serventia extrajudicial me apresentou aspectos do dia a dia do expediente que também acenavam para a necessidade de uma melhor compreensão, pelos operadores do direito em geral, sobre o regime de responsabilidade civil de tais serviços. Longe de pretender esgotar o tema, a proposta do livro é justamente servir como uma ferramenta prática de consulta, sobre os pormenores da matéria, pelos operadores do direito.

 

ANB – Como a obra conversa com o cotidiano das serventias?

Assuero Rodrigues Neto – Eu não cheguei a pesquisar sobre o número de processos que envolvem a apuração de responsabilidade civil por atos praticados pelas serventias extrajudiciais, mas pela experiência que tive como advogado posso afirmar que eles não são tão incomuns. Sem entrar no mérito da pertinência das tantas demandas, a verdade é que essas ações acabam fazendo parte do seu cotidiano. Essa pergunta também me remete a lembrança de um colega titular de uma serventia, que faz alguns anos foi demandado judicialmente em ação cuja pretensão era a sua responsabilização civil por um dano supostamente suportado por um usuário do serviço. Mesmo sendo um profissional de grande capacidade para mister a que estava encarregado, pude perceber que ele teve alguma dificuldade para compreender com clareza a situação que estava confrontando. Foi pensando neste tipo de contexto que decidi enfrentar a matéria, buscando produzir um material de fácil consulta – com a apresentação das principais posições da doutrina e da jurisprudência sobre cada tema – do qual os titulares possam se socorrer em caso de dúvidas.

 

ANB – Como se dá a relação de responsabilidade de tabeliães em tempos de pandemia? A crise sanitária trouxa alguma modificação neste processo?

Assuero Rodrigues Neto – Entendo que o regime jurídico da responsabilidade civil dos tabeliães não tenha sofrido mudanças significativas ante as modificações trazidas pela crise sanitária. É bem verdade que não podemos fechar os olhos para o grande avanço impulsionado pelo advento da pandemia da Covid-19, fortemente na permissão para a prática de atos de maneira totalmente digital. Essas novidades trouxeram novos cuidados a serem tomados quando da prática do ato notarial pretendido. Notadamente, a falta da adoção de tais medidas pode ensejar a responsabilização pelo responsável do serviço, mas já no regime do direito de regresso pelo Estado, conforme a tese fixada no tema de repercussão geral número 777 (Recurso Extraordinário 842.846). Não obstante, conforme já salientado, compreendemos que a aferição da responsabilidade civil no caso concreto permanecerá seguindo o posicionamento firmado pela Corte, pelo qual o Estado responde objetivamente pelos danos causados no exercício das atividades notariais, devendo exercer o direito de regresso contra os titulares das respectivas delegações, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.

 

ANB – Qual a importância de o tabelião se atentar a casos extraordinários quando habilidades e conhecimentos são postos à prova?

Assuero Rodrigues Neto – Não é novidade que o mister do tabelião deve ser orientado pelo esclarecimento das partes que o procuram, investigando os elementos por elas trazidos, de forma a concretizar sua vontade através do mais adequado instrumento jurídico. Deve atuar como assessor jurídico das partes, orientado pelos princípios e regras de direito, pela prudência e pelo acautelamento. O tabelião de notas atua verificando o aspecto legal dos atos e negócios jurídicos a que dá vazão. Notadamente, é comum no cotidiano das serventias desta atribuição que o problema posto pela parte demande uma solução que depende de boa engenhosidade jurídica. Não obstante, compete ao tabelião encontrar, dentro dos limites impostos pelo direito, alguma solução viável. Nesta esteira, não me parece de boa técnica o tabelião apresentar a sua solução desprezando eventuais riscos de futuras demandas que seu ato possa gerar. Tal conduta afrontaria uma das premissas de sua atuação, qual seja, o acautelamento. Notadamente, agora sob o viés de eventual responsabilização civil pessoal pela prática do ato, compreendo que, uma vez formado o seu convencimento jurídico sobre o caso concreto, o ato notarial deve ser praticado. Partindo da premissa que se trata de profissional do direito, com formação técnica e submetido a concurso público de provas e títulos para poder assumir tal função, permite-se concluir estar preparado para enfrentar casos extraordinários, apresentando soluções bastante jurídicas, não havendo que se sustentar a imputação de responsabilidade civil por eventual imperícia.

 

ANB – Como a responsabilidade civil se estende ao mundo virtual com a regulamentação dos atos notariais online?

Assuero Rodrigues Neto – Conforme já mencionado anteriormente, a realidade da pandemia da Covid-19 impulsionou as alterações que, de certa forma, já eram esperadas pelos notários, quanto a possibilidade da prática de atos notariais online. O trampolim do avanço foi o Provimento CNJ 100/2020, que não só autorizou a prática de atos dessa forma, como também trouxe a sua regulamentação. Um dos principais óbices até então vislumbrados foi superado pela chamada “presencialidade mediada pela tecnologia”. A realização da sessão de videoconferência, com a identificação dos comparecentes mediante a certificação digital, foi encontrar a tão almejada segurança para comprovação de autoria e integridade dos documentos. Tudo isso dentro da plataforma mantida por esta Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil – o e-Notariado. Junto com as funcionalidades e possibilidades, a normativa administrativa trouxe um novo arcabouço de regras a serem observadas pelos tabeliães. É neste particular que me parece haver um acréscimo quanto aos deveres técnicos pelo tabelião na prática de atos de seu ofício. Eventual desídia quanto a tais deveres, ensejando invalidades, me parece ser uma hipótese de imperícia a sustentar o reconhecimento do dever de indenizar pelo tabelião, obviamente em ação de regresso.

 

ANB – Como a relação entre a responsabilidade civil e a central eletrônica dos notários se conecta às medidas de segurança de dados particulares?

Assuero Rodrigues Neto – Sobre as obrigações quanto a segurança de dados particulares, trazidas no bojo da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), Lei 13.709/2018, a aferição da responsabilidade civil encontra nos seus artigos 42 e seguintes as regras que preveem indenização quando ocorrer dano moral ou patrimonial em decorrência do exercício irregular na atividade de tratamento de dados pessoais. A referida lei inclui na rubrica de “exercício irregular” a violação da segurança e a falta de adoção de medidas de segurança. Ou seja, a responsabilização prescinde da efetiva violação dos dados pessoais dos titulares, bastando para configurá-la o mero risco a que os titulares ficaram expostos pelo agente de tratamento não ter tomado as medidas de proteção aos dados previstas na lei. Notadamente, enquanto agentes de tratamento de dados, os notários que praticam atos pela plataforma do e-notariado não violam dados pessoais, tampouco os colocam em risco. Lembre-se que é um profissional do direito que conduz o ato, e como conhecedor dos deveres decorrentes da LGPD, tem competência para impedir condutas que exponham ou coloque em risco dados pessoais. Ou seja, parece-nos que a aferição da responsabilidade civil nestes casos deve ser pautada na análise da culpa em sentido estrito, quanto aos cuidados tomados pelo tabelião para a prática do ato que ensejou o descumprimento da determinação legal.